O Pessoa que somos

Nestes dias, acordamos para Pessoa. Sem dúvida que deveríamos, mais do que acordar, ter o dia com Pessoa. Não seria difícil ver um verso ou um pensamento de Pessoa numa qualquer acção, se calhar corriqueira, que todos os dias levamos a cabo na nossa vidinha. A diferença está na forma como se vê a vida, ou melhor, a existência das coisas.



Sinto-me sempre despertar para um lampejo com Fernando Pessoa, como se me embrenhasse numa adolescência tardia de aprendizagem.



No início do meu relampejo, deificava Alberto Caeiro. Com o tempo, afigurou-se-me, com outra roupagem, um Álvaro de Campos, muito mais arguto. Ao mesmo tempo, foi parturindo, em frases soltas, um Bernardo Soares. Lembro-me de repetir, não sei quantas vezes, determinadas frases que lia a propósito das mais variadas temáticas. Ficava a levitar, com um «heureca!» existencial que me fazia compreender melhor as engrenagens encobertas da vida. Sabemos que as coisas existem mas limitamo-nos a observá-las através de um fino e macio tecido. Bernardo Soares desnuda-nos, despe-nos do lixo acumulado e anuncia-nos o etéreo apocalipse, não no sentido religioso que o termo adquiriu, mas somente na sua raiz grega, a de revelação ou, se quisermos, acção de descoberta.



Fico a cismar nisto: um povo de descobridores e deixamo-nos descobrir tão pouco.

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Alguns excertos da entrevista de Mário Cláudio à revista Visão (V796), a propósito do seu novo livro, Boa Noite, Senhor Soares:

«Até porque o que me interessou aqui, também, foi ver no Bernardo Soares o próprio Pessoa.»

«É um livro que se lê [Livro do Desassossego] com espanto, (...)»

«É uma história escrita por mim a partir do que ele, a minha personagem, me disse. Este livro para mim também significou uma coisa importante: fazer intervir na criação ficcional portuguesa a adolescência. A nossa literatura para adultos é singularmente alheia ao universo da adolescência.»

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«Narrativa com exemplar e coerente sucessão episódica, na reprodução minuciosa da diacronia histórico-social, Boa Noite, Senhor Soares retoma o melhor das narrativas breves de Mário Cláudio, sobretudo as de Itinerários (1993), recriando a imensa sombra de Fernando Pessoa (em especial a de Pessoa-Bernardo Soares e do microcosmo do Livro do Desassossego), sempre em termos duma crónica lisboeta que oscila constantemente entre o familiar e o estranho.»


Álvaro Manuel Machado, Expresso

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