Partida de bolapé

Era dia de tomada de posse. No ecrã, arrastavam-se as imagens com Barack Obama, numa sucessão de pequenos intróitos antes do ansiado discurso.

Sentei-me no sofá da sala de professores. No início, ainda tive a companhia de uma colega, mas, passados alguns minutos, dei por mim como único espectador a testemunhar aquele tão desejado momento histórico. A determinado momento, ri-me. Dois milhões, ou mais, a assistir à cerimónia e eu ali, alienado da multidão em delírio, a conversar para mim. Tinha a vantagem de estar comodamente instalado e de a temperatura, também, não me exigir aquelas engraçadas "tapa-orelhas" felpudas na cabeça.

Estendi, assim, o olhar até ao livro que me acompanhava, afinal, naquela portentosa celebração. Deixei os ouvidos entretidos e fui passear pelas palavras de Pessoa. Tenho de confessar que também eles me abandonaram ou, se calhar, fui eu que os abandonei ao frio de Washington.

Sem multidão que me tolhesse os movimentos livres, saltitava de página em página por entre o magote de letras e sílabas e palavras, enfim, muita gente ali comigo, a dar-me trela, menos a multidão enregelada do lado de lá.

Seguro, na mão esquerda, tinha o livro A Língua Portuguesa, de Fernando Pessoa, uma edição de Luísa Medeiros, da Assírio e Alvim.

Que estupidez a minha pensar que se está sozinho quando se anda com Pessoa.

«My fellow citizens:
I stand here today humbled by the task before us, ...»

Pois é, um murmúrio longínquo esvoaçava molemente no ar. Lia em silêncio por fora da agitação do concerto das palavras.

«Nor is the question before us whether the market is a force for good or ill. Its power to generate wealth and expand freedom is unmatched, but this crisis has reminded us that without a watchful eye, ...»

Pessoa e eu, mais ele do que eu, que já conhece todo o livro, ouvíamo-nos e ouvíamo-lo a discursar. Fernando estava estarrecido com o poder da televisão, esse mostrengo palrador, que nunca se atemoriza perante o pequeno homem do leme.

O discurso em inglês fê-lo proferir várias considerações acerca do exagero que se toma em adoptar estrangeirismos. Parece, dizia-me, que se não conhece a língua portuguesa. Por isso, copiam-se palavras que já existem, com aqueles mesmos significados, na nossa língua. Para club, temos "grémio"; para lunch, "merenda"; para menu, "ementa".

Concordei com ele, mas proferi-lhe, cuidadosamente, que essas palavras estavam, irremediavelmente, perdidas. Hoje, ninguém utiliza “grémio” para “clube”, tal como o anglicismo “lanche” já tomou a dianteira em relação a “merenda”, de utilização mais rural. Talvez ainda vá sobrando “ementa”, que luta com “menu” na hegemonia do lugar cimeiro dos expositores dos restaurantes. Valha-nos, ao menos, o aportuguesamento que entretanto se fez.

Pessoa concordou, mas, endireitando os óculos descaídos, lastimou a falta de patriotismo na utilização da pulcra língua.

Enterrei-me mais um bocado no sofá, com vergonha, pensando se lhe deveria contar o que tinha cogitado naquele momento. Enchi-me de coragem e lancei-lhe que nacionalismos, por aqui, só se for com a selecção de futebol. Disse-lhe que em 2004 se desfraldaram, em todos os lares, bandeiras nacionais fabricadas na China. Por vezes, até, circulavam nos carros e nas motos, o que demonstrava o nosso grande patriotismo, pese embora se tenha gerado alguma confusão na hora de as hastear, pois que umas tinham a cor verde à esquerda, outras à direita. Compreendia-se, temos poucos momentos de exacerbação nacional. Ora o que se estranhava e não se entranhava era que houvesse tal patriotismo por uma selecção que nunca ganhou nenhum grande título, e não o houvesse pela literatura, que já foi laureada com o mais alto galardão internacional, nem pela língua, que, a seguir ao inglês e castelhano, se projecta em importância por todos os Continentes. Se havia algo que nos orgulhava na nossa história de andarilhos, era esta irmandade que tínhamos. Com a língua não havia patriotismos de bandeiras, havia patriotismos de falantes, havia patriotismos de culturas, havia patriotismos de identidades, havia patriotismos de entendimentos.

Pessoa ouvia-me com atenção, admirado pelo meu repentino e inesperado acesso de raiva. Depois, relembrou-me as palavras do seu íntimo amigo Bernardo Soares, de que, para ele, a pátria era a língua portuguesa. Respondi-lhe que também o Mia Couto considerava que a sua pátria era a sua língua portuguesa.

Todavia, notei que as suas sobrancelhas se tinham empinado mais do que era costume. Percebi a razão quando me interrogou sobre o termo que utilizei para indicar uma certa modalidade desportiva. Não compreendeu o motivo de eu empregar a palavra “futebol”, mais uma vez um empréstimo externo adaptado, quando existia o vocábulo português para tal, “bolapé”.

Admito que fiquei um pouco intrigado com aquela novidade que me dava e respondi-lhe que essa palavra criada para esse fim, infelizmente, não teve qualquer êxito de utilização, pelo menos que eu o soubesse.

Pessoa não desarmou e continuou a contra-atacar, dizendo que deveríamos fabricar sempre um vocábulo novo, de índole bem nossa, para a palavra estrangeira de que não tivéssemos equivalente. Portanto, para “football”, continuou, fabricaríamos “bolapé”, “pedibola”, “ludopédio”, “balípodo” ou coisa parecida.

Não sei bem se lhe respondi algo do género "pois sim" ou se me limitei a abanar a cabeça com pouca convicção. Sabia, intimamente, que nunca iria utilizar tais palavras, a não ser que me quisesse expor ao ridículo. Mas não lhe disse isso, temia ser mal interpretado.

Quando dei por mim, o discurso já estava naquela parte em que o Obama dizia «God Bless America». Houve um estampido de palmas que me fez despregar os olhos de Pessoa.

Ao certo, não sei quanto tempo passou. O nosso diálogo silencioso terminou por ali, pois na sala entravam agora, vindas de outros discursos, outras pessoas.

O livro fechou-se devagar, seguindo o peregrinar do pensamento, ainda volteado da partida:

Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

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