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sábado, 6 de dezembro de 2008

Crónica temperada

“Quando eu era mais catraio”

Sentados numa das mesas do bar, íamos deglutindo o caldo verde, por entre um ou outro momento de apuramento gustativo, quando calhava vir, enredada nos fios de couve, uma lasca de chouriço vermelho. A sopa, como é habitual, requer cuidados redobrados com a língua, não se vá ela escaldar naquela cálida rescendência. Porém, naquele dia, estava a saber bem encostar os lábios, frouxamente, à colher e aspirar, num misto de sopro e sucção, o caldo fragrante. O dia estava frio e os casacos não se despiram, por isso, eram corpos quase inertes os que se abandonavam nos assentos gélidos. Se uma mão dava quentura ao corpo, a outra aproveitava o ócio para se abrigar na algibeira, embora, por vezes, lhe coubesse alguma partilha, contrafeita, de tarefas: ora o alçar do papo-seco, ora o “limpa-beiças”, como dirá alguém.

Por entre este descontraído manejo tilintante, outro retinido se elevava por todo o espaço.

“Parece que o Banco Central Europeu baixou as taxas de referência”.

“Já viste que a Caixa Geral de Depósitos vai emprestar não sei quantos milhões ao BPP?”

“Olha lá, é Banco Português Privado ou Banco Privado Português?”

“É Banco Privado Português”.

“Ah, pois é!”

O jornalista lá ia passando em revista as notícias. Nós, com as cabeças alçadas, lá tentávamos seguir um ou outro rodapé.

“Sabem, quando eu era mais catraio fiquei impressionado quando vi o ford do Oliveira e Costa estacionado em Mataduços. Era um grande carro naquela altura, nos anos oitenta. Poucos tinham um carro daquele calibre e, ainda por cima, ali estacionado, praticamente abandonado junto a uma oficina de pintura”.

“Quando eras mais catraio? Quer dizer que ainda és catraio!?”

Naquela altura, lá queria saber das pistas deslizantes da língua portuguesa. Saboreava, satisfeito, o caldo verde, abocanhava uma sande de frango e, sobretudo, imaginava, como dizia Fernando Pessoa, o «outrora agora», as brincadeiras de uma meninice que passou, mas ficou em fragmentos temporais.

A expressão saiu-me, talvez desvirtuada pelos respingos de caldo, com o sentido de “Quando eu era mais pequeno”, “Quando eu era criança”. Aliás, há mesmo a expressão “os mais pequenos”, ou seja, “as crianças”.

Ao dizer-se “Quando eu era mais pequeno” quer-se remeter para uma outra idade, para o passado. Não sei bem porquê, mas se dissermos “Quando eu era pequeno” deixa de ter o sentido de criança e parece que remete para a ideia de altura, como numa correcção mais erudita teríamos de dizer “Quando eu era menor”. Pode estar correcto o comparativo de superioridade, mas neste contexto não faz sentido.

Penso que quando se diz “Quando eu era mais pequeno” se quer dizer “Quando eu era criança” e não literalmente que se é criança, embora já menos. Mesmo o advérbio “mais”, para além de poder significar “em maior quantidade”, também pode indicar “antes”.

Assim, a expressão “Quando eu era mais catraio”, variante de “Quando eu era mais pequeno”, teve a intenção de marcar uma diferença temporal, como se dissesse “Quando eu era, outrora, catraio”. Claro que existe uma certa redundância em relação ao pretérito, mas essa mesma redundância permite reforçar a distância.

A língua é extraordinária. Por mais que nos digam que é repetitivo dizer “juntamente com” ou “há anos atrás”, lá estamos nós a ajeitar o “com” ou a pôr o “atrás”. Se não o fizermos, parece que as expressões nos surgem sem identidade.

Tudo isto num almoço. É verdade!

Agora que o café está tomado, temos de retornar à lida. Retemperámos as forças e a disposição para mais uma tarde de trabalho. Ficou para trás a alegre e desconcertada cavaqueira, que, mais do que conclusões, deu azo a umas quantas divagações pela língua. É bom quando não perdemos tempo com os amigos, mas empregamos o tempo com os amigos.

Apetece-me terminar com Alberto Caeiro, talvez por uma certa nostalgia que me tomou, agora que me iluminam as luzes tremeluzentes da árvore de Natal.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

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