Fernando Pessoa, o “indisciplinador de almas”


Numa recente sexta-feira, deambulando pela Fnac Madeira e aproveitando uma folga dada pelo meu “buzico”, que se entretinha com a mãe a ver o Winnie the Pooh na secção infantil, relampejou-me um expositor com um considerável número de livros, encimado por uma daquelas palavras que remetem para preços convidativos.

Pensei que valeria a pena dar uma espreitadela ligeira, mais por curiosidade do que por convicção de lá encontrar alguma “relíquia” da literatura. Talvez por já conhecer a história da “camisa de rendas perfumada de Mary”, pensava que não pudesse ser surpreendido por nenhuma “coroa” valiosa. O certo é que, manuseando os vários volumes, fui paulatinamente mudando de opinião. Para minha surpresa, escancara-se-me uma obra que considero única, A Língua Portuguesa, da sóbria editora Assírio & Alvim, com a edição dos textos de Fernando Pessoa a cargo de Luísa Medeiros.

Como um lobo esfaimado, atirei-me à única presa que ali se encontrava, desprotegida da salivação do olhar e das garras sedentas para a folhear.

Considero a compilação dos textos e a organização do volume ímpares, para mais neste momento que atravessamos, em que se está a dar início à implementação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado em 4 de Junho de 1991, e que, parece, vai começar a ser introduzido nos currículos do ensino básico no ano lectivo de 2010-2011, de forma a que, em 2014, se escreva plenamente segundo o Acordo.

Numa primeira parte, o livro apresenta “O PROBLEMA ORTOGRÁFICO”, para, numa segunda, se espraiar pela “DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA”, terminando com um posfácio interessantíssimo intitulado “Em Demanda da Ortografia Etimológica”.

Os textos, quer da Parte I quer da Parte II, foram retirados do espólio depositado na Biblioteca Nacional, com a novidade de este volume ser constituído, na sua maioria, por textos inéditos.

Realmente, com esta edição, temos acesso a mais um dos extensíssimos interesses de Fernando Pessoa, desta feita na defesa que faz da ortografia etimológica, revelando conhecer bastante bem as bases da Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa de 1911, a qual ele discute, rejeita e contrapropõe, apresentando regras e normas.

Pessoa contesta não a uniformização ortográfica mas sim o modo como tal uniformização se deu, pois valorizou-se «a escrita fonética em detrimento da grafia etimológica que até então vigorava». O escritor insurge-se, também, «contra a unilateralidade que essa reforma revestiu» (Posfácio, p. 173), pois, para Pessoa, Portugal e Brasil deveriam adoptar a mesma ortografia, de preferência «a etimológica» (p.181).

Luísa Medeiros acrescenta que na «etimologia gráfica, a língua guardava a nobreza e a riqueza semântica dos elementos que a compunham. Era contra a pobreza com que pretendiam revestir a palavra portuguesa que Pessoa se batia» (p. 176).


Alguns excertos:

Parte I

«A palavra falada é um fenómeno natural; a palavra escrita é um fenómeno cultural. O homem natural pode viver perfeitamente sem ler nem escrever. Não o pode o homem a que chamamos civilizado [...].» (p. 19)

«[...] a ortografia, sendo um fenómeno cultural, é puramente individual, não tendo o Estado coisa alguma com ela, ou de qual qualquer usa, salvo nos estabelecimentos oficiais ou escolares, [...].» (p.30)

«Não faz mal que Ph se pronuncie como F; a grafia Ph tem uma razão etimológica compreensível, e, à parte isso, toda a gente sabe que PH se pronuncia F, e sempre F.» (p. 45)

«O mais vulgar dos apelidos ingleses – o Silva de lá – escreve-se de 4 maneiras, se não de mais: Smith, Smithe, Smyth e Smythe, e a pronúncia é a mesma. É por isso pergunta corrente num inglês, ao ser-lhe dito o apelido, às vezes vulgar, de um compatriota: “E como é que se escreve?”» (p. 46)

«A língua, e portanto, a ortografia, portuguesa é profundamente conjunta de Portugal e do Brasil.» (p.52)

«Enfim, a ortografia moderna fazia aqui, não sei porquê, parte do “espírito republicano”, que ninguém sabe o que é.» (p. 52)

Parte II

«Philosophia deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta sobre bases clássicas ou pseudo-clássicas.» (p. 56)

«A cultura é um fenómeno pelo qual estamos ligados ao passado pela inteligência; [...].» (p. 57)

«A linguagem fez-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela.» (p. 73)

«A ortografia etimológica é a expressão gráfica da continuidade da nossa civilização e da nossa cultura com a civilização e a cultura dos gregos e dos romanos, em que aqueles tiveram origem e têm vida.» (p. 75)

«Todas as palavras de derivação diferente [do grego e do latim] ajustam-se às regras ortográficas da pronúncia portuguesa, independentemente de como se escrevessem no original.» (p. 79)

«As palavras directamente derivadas do latim, mantêm as suas consoantes duplas e os seus grupos consonantais, quer estas distintamente se pronunciem ou não.» (p. 81)

«O argumento da uniformização é uma coisa, a base em que uniformizar é uma outra. Sobre as vantagens da uniformização ortográfica estamos, creio, todos de acordo; não o estamos sobre a ortografia que haja de ser uniforme.» (p. 89)

«Mas, se havia que reformar, a reforma não haveria de ser senão em tornar o sistema mais lógico, mais coerente consigo mesmo, [...].» (p. 91)

«Se tivermos de ter uma língua natural universal, essa língua será o inglês e servirá tanto como língua cultural que como língua natural. Se tivermos de ter uma língua artificial universal, essa, teria ainda de ser inventada e deveria ser o mais completa possível, e não o mais fácil possível.» (pp. 117-118)

«[...] uma língua artificial deveria ter naturalmente por base o latim, [...].» (p.134)

«A primeira condição para uma ampla permanência de uma língua no futuro é a sua difusão natural, o que depende do simples factor físico do número de pessoas que a fala naturalmente. A segunda condição é a facilidade com que poderá ser aprendida [...]. A terceira condição é que a língua terá de ser o mais flexível possível, [...].» (pp. 148-149)

«[...] só há três línguas com um futuro popular – o inglês (que já tem uma larga difusão), o espanhol e o português. [...] Assim línguas como o francês, o alemão e o italiano só poderão ser europeias: não têm poder imperial.» (p. 149)

«Um verdadeiro homem só pode ser, com prazer e proveito, bilingue. [...] duas são o limite humano de qualquer homem que não nasceu para se suicidar como filólogo da inutilidade.» (p. 151)

«Devemos transformar o inglês no latim do mundo inteiro.» (p. 151)


No POSFÁCIO, Luísa Medeiros refere que Fernando Pessoa, como «arauto da cultura e de Portugal», projectou uma empresa para ministrar cursos de língua estrangeira e para estabelecer intercâmbios com organizações estrangeiras, à qual deu o nome de Athena. Contudo, tal empresa nunca passou do papel, a não ser a revista com o mesmo nome, que chegou a ser publicada.

Houve, ainda, outros projectos, como «Cosmopolis», que contemplava, por exemplo, «passar trabalhos à máquina; dar “informações diárias a respeito de câmbios, viagens de comboio, hóteis”; possuir um gabinete de leitura; fornecer “listas de casas para alugar”; ou ter a especialidade de “mandar vir livros do estrangeiro”; [...] fazer “buscas literárias em bibliotecas”; fazer “traduções para e de todas as línguas”; publicar um “guide-book” para turistas e um Anuário Geral sobre Portugal,». Por volta de 1919, define a criação do “Grémio da Cultura Portuguesa”, que tinha por fim «divulgar e valorizar a cultura portuguesa em todas as suas formas». Propunha-se, ainda, «elaborar uma obra em “Defesa e Ilustração da Língua Portuguesa”», bem como um Dicionário Ortográfico, Prosódico e Etimológico da Língua Portuguesa.

Todavia, de todos os projectos que idealizou, poucos se concretizaram. «Porém todos se inseriam nesse seu desejo de criar um Portugal mítico, ressuscitado pela nostalgia do passado perdido», que encabeçaria uma nova civilização espiritual e cultural.

Por último, é necessário falar de um outro extraordinário projecto que intentou, o de conceber uma língua artificial internacional, para que colmatasse as falhas das línguas naturais e resolvesse «o problema da comunicação internacional. Dela nos deixou, além das reflexões que presidiram à sua elaboração, uma gramática e um vocabulário que, como era seu hábito, não chegou a concluir».

«O espaço futuro da comunicação internacional científica pertence, segundo ele, à língua inglesa; o da criação literária à língua portuguesa. O primeiro prende-se à racionalidade do mundo material e o segundo à expressão universal da cultura, que só poderá ser conseguida através do registo etimológico da palavra criadora.»

Um livro, sem dúvida, bastante esclarecedor sobre a posição de Fernando Pessoa acerca de várias vertentes da Língua Portuguesa.

“Quem não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma.” (Fernando Pessoa)

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