Relíquias de uma Biblioteca Escolar

Torna-Viagem, de Horácio Bento de Gouveia
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Torna-Viagem é, como assume o autor no subtítulo, o romance do emigrante, em que, sempre no dizer do mesmo, “o descritivismo e a narrativa possuem uma inteireza, um visualismo e uma sobriedade retórica de estilo clássico”.
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O romance, cuja acção tem início na viragem dos anos trinta para quarenta e fim por volta do ano de setenta e sete, organiza-se em duas partes.
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Na primeira, intitulada “vidas ignoradas”, o narrador pinta a vida dos habitantes da Achada do Castanheiro, lugar da freguesia de Boaventura, onde as marcas da insularidade lhes determina o quotidiano. Duas estórias distintas e exemplares vão constituir a tessitura diegética: a do sapateiro Artur, recém-casado e preso à sua condição social, levando-o a tomar a decisão de emigrar, e a do casal Freitas, o Francisco e a Inês, que também se vê obrigado a demandar outras terras por não haver na freguesia condições económicas de sustentabilidade para o pequeno comércio em que investiram, nem perspectiva de mobilidade social.
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Na segunda parte do romance, designado como “o emigrante”, seguem as tribulações desses e outros filhos da Achada, pelo Brasil e, depois, pela Venezuela, com todos os fracassos e sucessos, mantendo sempre viva a esperança de voltar ao torrão natal e “conquistar um lugar de direito junto dos seus conterrâneos.” Artur, a quem “ a falta de tino por causa das mulheres” deita a perder as boas oportunidades, volta, no final, já envelhecido e sem nada, passados trinta e cinco anos, à casa de partida e à mulher que abandonou, enquanto a família Freitas, animada por um espírito empreendedor, acaba por colher os frutos de seu trabalho, dando corpo a uma história de sucesso empresarial na Venezuela.
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Torna-Viagem não perdeu actualidade. Hoje como ontem, ilhéus continuam a emigrar e os problemas que enfrentam também são de vária ordem. Há os bem sucedidos e há os desventurados da sorte.
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[Graziela F. Camacho]
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Dois excertos:
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«E depois de algurandearem, os olhos tolhendo a reflexão, seduziu-os a obra indígena de vime; e desarvorou o automóvel direito ao Santo para, momentos vividos em que se olha e não se vê, flectir o carro através da estrada de ziguezague até à Portela. O morro da Penha d' Águia afrontando o mar suscitou de Fonseca Pereira:
-- Faltam-me as palavras para dizer o que sinto!
À vista das fazendolas cultivadas acolá onde os abismos se afundam em boqueirões que os olhos apavoram, o senhor Pereira formulou o juízo:
-- Se a Ilha é toda assim a emigração é necessidade do homem. Agora compreendo que o madeirense emigre para Venezuela, Canadá, Austrália, Brasil... O trabalho duro do homem deve ser quase insuficiente na conservação da vida do corpo.» [p. 234]
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«Fonseca Pereira compreendeu, com digressar pelas terreolas, que a emigração é uma necessidade do ilhéu. Vida escravizada à terra tão retalhada que as nesgas mal chegam para extrair da vida dura o pão que alimenta escassamente e escassamente dá o vestuário e o calçado. E foi confabulando, terminado o almoço, que o Francisco Freitas descreveu o panorama económico da maioria das populações do norte da ilha: as culturas são pobres e a gente tem de ser pobre.» [p. 238]

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